segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Olivia de Cássia Cerqueira 



Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros faziam a festa, animados. Era primavera, mas no Nordeste do Brasil já era verão; a temperatura fervia, deixando os dias mais longos e as noites curtas. Na Rua da Ponte, a rotina não mudava para Maria Rosa e todos os dias ela cumpria o mesmo ritual. Pensativa, ela sonhava com uma vida melhor para si e para os filhos. Em não trabalhar tanto para ter o sustento da família.

Às vezes, pensava na acomodação do marido, que era muito devagar, quase irresponsável. Ela estava perto da idade da aposentadoria e cansada de tanto trabalho. Havia dias em que acordava e pensava que não ia dar conta do recado. Sentia algumas dores no corpo, mas agradecia a Deus pela vida que tinha e procurava ter pensamentos positivos, o que a ajudava nas dificuldades diárias.

As filhas mais novas, Maria José e Maria Quitéria, começaram a preocupar, quando vieram os primeiros namorados. Maria José estudava na Escola Rocha Cavalcanti, construída na segunda década do século XX, inaugurada em 1928, se não me falha a memória, e foi a primeira escola oficial da cidade, ainda hoje em atividade.

Nas paredes das salas:  mapas, desenhos em cartolina e janelas de madeira divididas em duas partes. O pátio, ainda sem piso e uma grande árvore no meio, servia para as brincadeiras das crianças na hora do recreio. Nas cadeiras ou carteiras para os alunos cabiam duas pessoas. As salas eram abertas, com entradas arqueadas, dando para ver a sala vizinha e do lado; a professora chamava-se Josefa da Conceição, que era alta e forte; ela vestia luto carregado e permanente pelo marido e pelo filho, mortos em jum acidente automobilístico; luto pela vida de acontecimentos tristes. Mas ela enfrentava tudo com muita dignidade.

Na escola, Maria José conheceu aquele que viria a ser o seu “príncipe encantado”, Antônio Marcelo, até que ele virasse um “sapo”. Todos os dias, os namorados saiam juntos do Rocha Cavalcanti e faziam o percurso até a Rua da Ponte, pela ladeira grande, próxima à Rua da Cachoeira, que era de barro e sem saneamento durante muitos anos. 

Antônio Marcelo também foi morar na Rua da Ponte. Sua família era natural de Sergipe, de Canindé do São Francisco, próximo ao município de Piranhas, em Alagoas, e onde Lampião, o rei do cangaço, foi morto e teve a cabeça decepada. Com o tempo de namoro, Maria José começou a perceber alguns comportamentos estranhos no namorado e se questionava se era aquilo que queria para sua vida. Ele se mostrava machista, controlador e dominador; não queria que a namorada saísse sem que fosse em sua companhia e ignorava tudo o que não fizesse parte do seu mundo arcaico e atrasado. Mas Maria José acreditava que ele mudaria com o tempo. Tentava argumentar, mas era sempre contestada e recriminada por ele.

Com tudo isso, Maria Rosa se preocupava com o futuro da filha, como toda mãe, pois a achava ainda muito nova para pensar em namoros sérios. Dava conselhos e mostrava seu exemplo de vida, que saiu de casa sem a aprovação dos pais, Jacira e Manoelito, descendentes de pessoas escravizadas e sem estudos, mas com os olhos abertos para o mundo. O povo preto, independentemente de ser afortunado, ou não, ao longo dos séculos, sempre teve uma luta maior, porque Jacira e Manoelito, pais de Maria Rosa, cotidianamente, alertavam os filhos que tinham que saber entrar e sair dos lugares, pois a situação para o negro sempre foi mais difícil e seja lá o que fizesse era visto com censura.

Além do problema da idade, Maria José e Antônio Marcelo não tinham como se sustentar sozinhos. Ele conseguiu emprego de motorista de caminhão, que transportava cana para uma usina de cana de açúcar, mas ganhava muito pouco, e Maria Rosa temia pela filha, pois a situação ia “sobrar” para ela, que já “comia um dobrado”, para colocar comida na mesa, com a ajuda apenas da filha mais velha, que já se sentia explorada e queria sair de casa.

Maria Rosa pensava que não sabia mais como convencer os filhos sobre o rumo que deviam tomar, pois se sentia limitada e tinha apenas os conhecimentos que a vida lhe deu. Os filhos não davam ouvidos para o que ela dizia ou pensava. Na adolescência, a gente pensa que sabe tudo. Em uma briga de casal, motivada pela saída de Maria José com as amigas, quando Antônio Marcelo soube, agrediu a namorada proferindo palavras de baixo calão e batendo nela com um tapa no rosto, e Maria José terminou o relacionamento abusivo. Mas, depois da raiva passada, ele insistiu para voltar, prometendo mudar de comportamento e Maria José o perdoou, colocando sua vida em perigo.

União dos Palmares




Olivia de Cássia  Cerqueira


A cidade de União dos Palmares, em Alagoas, foi fundada em 13 de outubro de 1831. A região onde hoje se localiza a cidade foi o local do Quilombo dos Palmares, o maior quilombo da América Latina durante o período colonial. Conta-se que o quilombo ocupou uma área extensa da cidade, e que os primeiros indícios da presença humana na região datam do final do século XVI, quando negros fugitivos de engenhos de açúcar chegaram à Serra da Barriga.

Há várias versões sobre a figura de Zumbi, mas prefiro acreditar na versão do povo preto, que trata Zumbi como verdadeiro herói, do que na versão dos opressores. Para a maioria do povo afro, dos movimentos sociais e do movimento negro mundial, incontestavelmente, a figura do líder negro Zumbi dos Palmares é o principal símbolo de resistência e liberdade do país, junto com Dandara e tantos reis e rainhas que vieram obrigados ao Brasil, em situação degradante nos porões dos navios negreiros.

União dos Palmares também é terra do poeta, médico, escritor e fotógrafo Jorge de Lima; de Carlos Povina Cavalcanti; Maria Mariá; Silvio Sarmento e tantos outros personagens que vivem no anonimato. Mas a nossa história não é sobre o quilombo e nem sobre Zumbi e nenhum desses personagens.

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Além da dor


 Olivia de Cássia  Cerqueira



O sol escaldante do Nordeste do Brasil, nas grotas do engenho da Barriguda, no Cafuxi, Amolar, Baixa Seca, Jitirana e proximidades de União dos Palmares, nos anos 30; 40, 50, 60, 70 do século XX, não impedia que os trabalhadores rurais fossem para a lida do campo, submetidos ao contato com animais e plantas que podiam dar origem a doenças; uso indiscriminado de defensivos agrícolas; condições primitivas de vida; sem higiene ou saúde e educação, sem equipamentos de proteção, entre outros problemas.

Muitos eventos marcaram essas décadas no Brasil, entre eles: a extinção da República Oligárquica ou “República Velha”; a política do café com leite e o coronelismo. A criação da Aliança Liberal, que incluía os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba (Anos 30*). Os trabalhadores, também na década de 30, iam para a lida diária, em regime semelhante ao de escravos essas práticas perduraram por muitas décadas.

 

E foi nesse ambiente que viveram Salomão Celestino e Carmem Celestino, que já tinham dez filhos, a maioria de mulheres. Carmem estava grávida e teve complicações na gravidez: estava de nove meses e o casal solicitou formalmente ao dono da fazenda, Sr. Israel, e à sua esposa, Sra. Guilhermina, para serem padrinhos da criança, costume adotado por pessoas mais simples na época.

Sentindo as dores do parto no meio do mato, Carmem avisou a Salomão que era chegada a hora de o bebê nascer. Ele correu para chamar dona Zefa, a parteira da região, e foram para o rancho onde viviam. Mas assim que pariu uma menina, Carmem faleceu: não resistiu às dificuldades do parto, Salomão chamou a menina de Amaralinda, atendendo um desejo da esposa, que dizia, se a criança fosse mulher daria esse nome e se fosse um cabra macho seria Amaro.

Com tantas dificuldades para criar os filhos e tendo os padrinhos e donos da fazenda insistido para criarem a menina, Salomão cedeu Amaralinda, objetivando que vivesse com mais conforto. Os fazendeiros já tinham seis filhos: dois homens e quatro mulheres, que ficaram enciumados com a nova irmã e passaram a hostilizá-la.

Com o passar do tempo, a menina passou a ser tratada como se fosse escrava da fazenda: lavando roupas no rio, com trouxa de roupa na cabeça, num sol escaldante do Nordeste, além de cuidar de toda a casa grande; apanhar bastante de Guilhermina e dos demais ocupantes da casa grande. José Vaqueiro trabalhava próximo da família e percebeu os maus tratos que Amaralinda sofria. Observando-a de longe, encantou-se pela cabrocha, que foi crescendo com toda mágoa e sofrimento, dos pais adotivos e familiares.

Os maus tratos continuavam e Israel vigiava para não falar com José, pois o namoro continuava as escondidas e Amaralinda apanhava daqueles que  Salomão julgava que melhorariam sua vida.

Depois de tentativas, sem resultado, o vaqueiro resolveu falar com Israel sobre o namoro, e o pai adotivo de Amaralinda ficou irritado, castigando a menina, para não colocar a cabeça na porta da casa, quando chegasse alguém.

 Guilhermina, por sua vez, aproveitou a oportunidade para espancar ainda mais a moça.  Como se não quisesse se desfazer da “faz tudo”, descarregou toda a sua raiva, de uma forma que José saiu de perto para não piorar a situação da amada.

O sol ia baixando, e nuvens pesadas anunciavam chuva. E choveu cântaros, parecendo que não parava mais. Sofrendo muito e passado algum tempo, Amaralinda se viu grávida e pensava como iria ser, quando o padrinho e pai de criação descobrisse a gravidez. Se preocupava mais com a reação dele do que com a de Salomão, seu pai biológico.

Sabendo da situação de Amaralinda, Israel expulsou a menina de casa. Diante disso, Zé Vaqueiro fez uma última tentativa, pedindo Amaralina em casamento, no que Israel respondeu com arrogância: “O máximo que vocês podem fazer é se amigar.

E o que você vai ser aqui é meu trabalhador, na palha da cana”. Nesse instante, Israel jogou a braça* aos pés de José e ele mandou de volta, dizendo: “morro na ponta do boi; mas não vou cortar cana para homem nenhum. Minha sina é ser vaqueiro”.

Revoltada com o pai adotivo, Amaralinda também foi proibida de passar nas terras da fazenda de Israel; desviava o trajeto, quando precisava circular por perto dali. E assim passou a viver Amaralinda, até que chegou a hora do parir.

Vivia numa choça coberta de palha, cedida por um morador da região. Não tinha nada para a criança, muito menos móveis ou eletrodomésticos e outros objetos para si. O que tinha em casa era um pouco de colorau, um pingo de sal e outro de farinha.

Para matar a fome, ela improvisou uma vara de pescar e foi para a beira de um pequeno riacho, tentar pegar algum peixe para matar a fome. Quando foi saindo do local, as dores começaram e pensou que era chegada a hora de o bebê vir ao mundo”. Ela estava só.

As dores do parto a atingiam em cheio. Agoniada, ela olhou para um lado e outro, inexperiente com a situação. Pensou em colocar o orgulho de lado e pedir misericórdia na fazenda de Israel, mas parou um pouco e voltou para casa.

No outro dia, as dores voltaram mais fortes e aquela menina se deitou em baixo de uma mangueira para descansar um pouco. Foi quando iam passando dois trabalhadores e perguntaram o que ela estava sentindo e resolveram avisar na fazenda de Israel.

Uma das mulheres da casa mandou providenciar um caminhão, para encaminhar Amaralinda à maternidade de União dos Palmares, mas da mesma forma que o caso era mais grave, enviaram a gestante para Maceió e a deixaram na Santa Mônica, como se fosse indigente.

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Agência Senado (*)

“Braça é uma antiga medida de comprimento equivalente a 2,20 metros linearmente.  Apesar de antiga, atualmente ainda é usada e compreendida por muitos trabalhadores rurais e outras pessoas envolvidas com o meio rural.  njunto de 3 000 braças se dá o nome de légua”. **(*)

 (*) https://pt.wikipedia.org/wiki/Bra%C3%A7a -

 

 

domingo, 29 de dezembro de 2024

A lavadeira Maria Rosa e a Rua da Ponte

Foto: José Marcelo Pereira


 Olivia de Cássia Cerqueira


Nos anos 1960, na Rua Demócrito Gracindo, conhecida como Rua da Ponte, viviam a lavadeira Maria Rosa e sua família. Nessa época, o Brasil passou a viver os chamados anos de chumbo, com impedimentos das liberdades. Mas Maria Rosa e os seus desconheciam o que se passava no País, assim como a maioria da população.

Eles seguiam sua rotina, sem tomar conhecimento de assuntos complicados, além daqueles do seu dia a dia.. As notícias sobre as ações dos militares como as prisões e tortura não eram divulgadas até então, pelo menos para maioria daqueles moradores, trabalhadores ou desafortunados diversos. O País passou por grandes transformações, como a revolução cultural, a participação popular em questões sociais e políticas e o Aprofundamento do processo de industrialização. No interior, o trabalho rural continuava a ser realizado com engenhos que moviam culturas como o a cana de açúcar, milho e o algodão. A moeda era o Cruzeiro (1942-1967); depois Cruzeiro novo (1967-1970).

A década de 60 foi marcada por acontecimentos políticos e sociais turbulentos, como a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, assumindo João Goulart, ou Jango, como era conhecido, empossado na presidência da República, em 7 de setembro do mesmo ano.  Além disso, teve a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que instaurou o regime parlamentarista de governo; fechamento do Congresso; muitas mudanças de governo; subversão armada; luta estudantil; guerrilha e tortura. No cenário cultural, a década foi marcada pelo surgimento do Tropicalismo e da Jovem Guarda; a popularização do Rock and Roll e valorização do estilo individual; os jovens defendendo o seu estilo de vida e de se vestir.

No final da década, em 1969, aconteceu um grande festival que revolucionaria os costumes. O festival de woodstock, que  foi um evento musical que aconteceu entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, na fazenda de Max Yasgur, em Bethel, Nova York, nos Estados Unidos e foi um marco da contracultura e da música da década.  (*).

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A lavadeira Maria Rosa era religiosa, devota de Santa Maria Madalena; ia todos os domingos à missa, e desconhecia qualquer informação que não fosse do seu dia a dia e se concentrava na família e no seu trabalho, para sustentar a família. Morava próximo à fábrica de doces, no final da Rua da Ponte, alheia ao que se passava no País e no mundo. Sabia apenas o que conversava com as amigas, quando estava lavando roupas ou fazendo outra tarefa do dia, como lavar pratos e tomar banho de rio.

Maria Rossa dava duro para colocar comida na mesa, visto que o marido, José da Rosa, como era conhecido o mancebo, não tinha emprego fixo e vivia de pequenos biscates, quando aparecia. Tinha uma vida de mistérios. A mulher lavava e passava para várias famílias na terra da liberdade. Passava as roupas com ferro de brasa, quando sequer tinha água encanada na Rua da Ponte e os eletrodomésticos eram raros ou não existiam para as populações pouco ou nada assistidas. Àquela época o Mundaú não tinha um alto grau de poluição, como nos dias de hoje. Quando terminava de passar e dobrar cada trouxa de roupa, ela ia fazer entrega com a filha mais velha, Rosa Maria. 

Analfabeta, décima filha de pais pretos, nasceu no povoado quilombola Muquém, cuja população sobrevive até os dias atuais da venda de peças feitas do barro e agora da preservação da cultura negra. Panelas potes, quartinhas, frigideiras, moringas e tudo o que eles produziam e produzem nos dias atuais são vendidos na feira livre de União dos Palmares, aos sábados. A maioria do trabalho feito por mulheres. 

José da Rosa e Maria Rosa se conheceram na festa da Rua da Ponte, que era uma atração para os moradores, com seus barquinhos verdes, puxados por corda, até chegarem às alturas. Na festa, a animação ficava por conta das quermesses, pescarias e iguarias como carne assada, cachorro quente e maçã do amor, que faziam a animação dos moradores. Além disso, músicas românticas, por meio de alto falante corneta e bebidas.

Quando tinha festa, fosse na Rua da Ponte ou na Rua do Jatobá, do outro lado do rio, homens saiam pelas ruas com a imagem da santa, ou do santo padroeiro, durante o dia, jogando um pano branco no ombro, tocando pífano e zabumba, pedindo contribuição aos devotos que quisessem ajudar. assim se dava nas festas do interior mais longínquo do País e em União dos Palmares, em Alagoas, não era diferente e muitos bairros adotavam as festas de rua, com seu santo padroeiro.

Maria Rosa e José da Rosa, começaram a namorar e foi tudo muito rápido, até irem morar junto, mas não casaram no padre ou no cartório. Viviam, popularmente falando, amasiados. E ela não se ligava muito a essas tradições e burocracias da sociedade dominante. Tiveram quatro filhos, todos nasceram de parto normal: Rosa Maria, Maria José, Maria Quitéria e José Joaquim, o Quinzinho, que não cansava de dar preocupação para Maria Rosa, por causa das suas traquinagens.

A mãe lhe dava conselhos e temia pelo seu futuro, e quando José chegava em casa à noite, pedia que o marido conversasse com Quinzinho, mostrando-lhe os perigos do mundo. O marido, por sua vez, achava ser tudo exagero da mulher e não tomava nenhuma atitude.

Tentava uma conversa franca e aberta com seu marido sobre suas preocupações e expectativas em relação ao relacionamento e o com comportamento do filho, mas de nada adiantava. Na realidade, José não queria se envolver com nada que dissesse respeito a sua casa e a mulher estranhava aquele comportamento.

Achava esquisito aquele modo de agir de José, mas ela silenciava, para não comprar brigas maiores.  No entanto, alguma coisa estava fora de ordem, pensava. Maria Rosa, em momentos de aflição, pedia proteção para os filhos:

“Meu Senhor e meu Deus, proteja minha família de todos os males do mundo. Minha santinha, Maria Madalena, intercede junto ao Senhor Jesus Cristo, para que nada de ruim aconteça com meus filhos. Amém”.

Num dia da sua rotina diária e   conversando com as amigas; colocando suas preocupações, uma delas sugeriu que falasse com a esposa do prefeito, dona Constância Madalena, para quem Maria Rosa lavava roupa e engomava, solicitando que a mulher arrumasse um colégio interno para o filho.

O menino era muito sabido, inteligente, mas chegou na adolescência dando muito trabalho para Maria Rosa. Ele via a situação da mãe na labuta, era revoltado com o pai, José da Rosa, que não era de agrados, nem com os filhos, nem com a mulher. Era sisudo e misterioso, além de conservador e um tanto quanto ignorante com todos em casa, e Maria Rosa evitava discutir com ele, se fechando “em copas”, quando devia questioná-lo.

Rosa Maria, a filha mais velha, se atrasara nos estudos e fazia o Mobral, com a professora Josete Maria, com quem aprendeu as primeiras letras, na Escolinha do Bangu, que décadas depois foi levada por uma das enchentes, acontecida em 1989. O Mobral era o antigo programa de alfabetização do governo, que anos depois foi substituído pelo EJA – Educação de Jovens e Adultos, criado para quem se atrasou nos[O1]  estudos.

Rosa Maria estudava à noite, visto que durante o dia, quando não estava ajudando a mãe na lida doméstica e com as roupas das clientes, aproveitava para aprender a trabalhar com o barro, com os fazedores de panelas da Rua da Ponte. Queria sair de casa, casar e constituir família, mas não achava tempo para sair com amigas e conhecer rapazes, já que vivia para ajudar a mãe a criar os irmãos, aprender a lidar com o barro e tentar se adiantar nos estudos. E ela cumpria sua sina, andando pelas ruas e becos da cidade, entregando as roupas lavadas, com muito cuidado.

Era uma tradição no interior de Alagoas, assim como em outros estados do país o exercício de lavar roupa à beira dos rios e nos açudes quando estavam cheios, às primeiras horas do dia ou do fim da tarde.  As mulheres usavam pedras ou tábuas como se fossem a parte do tanque e que serviam para esfregar e bater as peças usadas no dia a dia e também roupas de cama, mesa e banho.

E para muitas dessas mulheres, lavar roupa era também uma profissão, mesmo em condições, muitas vezes precárias. Era dali que saia o dinheiro que ajudava a manter as contas em dia, comprar o alimento e tudo mais que era necessário para educar os filhos. Com a poluição dos rios, açudes e lagoas, a chegada de água nas casas, avanço das tecnologias, essa atividade foi acabando, ficando restrita em alguns povoados longínquos.Parte inferior do formulário

O escritor alagoano Graciliano Ramos, na obra Linhas Tortas (1962) disse que: “O ofício de escrever deveria ser realizado com o mesmo rigor que as lavadeiras de Alagoas fazem o seu trabalho: elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes”.

***

As dificuldades para os moradores da Rua da Ponte, principalmente para as donas de casa, eram enormes. Da mesma forma que não havia água encanada e nem para beber, nos anos 60, a maioria da gente da Demócrito Gracindo e das proximidades se valiam das cacimbas das fazendas, para obterem água limpa para beber. Era comum a romaria de mulheres e crianças com latas d’água na cabeça, até o local da cacimba e vice-versa. Quando chegavam em casa, colocavam um pano limpo na boca do pote ou de outro recipiente, para que aquela água fosse coada e pudesse ser consumida.

A Rua da Ponte chegou a ter uma fábrica de doces, próxima a casa da família de Maria Rosa. Alguns moradores do município, eram empregados da fábrica, que depois veio a falir e fechou, deixando alguns trabalhadores desempregados, pois a opção de emprego na cidade era escassa naquele tempo. O prédio ficou em ruínas, até que a enchente de 2010 levou tudo. Nos fundos da Fábrica de doces, a gente da rua também aproveitava para tirar o barro, para fazer panelas, quando a lagoa, braço do Rio Mundaú, estava seca.

Já os moradores dos sítios e dos povoados, depois que vendiam os produtos, na feira livre, iam fazer as compras semanais e de mês nas mercearias do lado de baixo da cidade. Alguns adolescentes de União tiveram seus primeiros empregos despachando e ajudando nas mercearias, de União dos Palmares.

Maria Rosa também fazia as compras do mês em uma mercearia, no começo da Rua da Ponte; comprava fiado e pagava quando recebia das clientes. Era assim que funcionava esse tipo de comércio: a maioria na confiança de quem vendia, que anotava tudo em um caderno ou caderneta. Na Rua da Ponte também tinha nessa época uma fábrica rústica de colchão de capim, do “seu” Francisco, um armazém de compras e vendas de cereais, de João Jonas (nosso pai, que também tinha bodega, como ele chamava), um hotel do sr. José Otacílio (Zeca), quando a entrada principal de União dos Palmares acontecia naquela região, e os viajantes transitavam pela ponte rústica de madeira, desativada pelas enchentes, no povoado Cabeça de Porco.

Além disso, mulheres idosas que benziam a pessoa, ou algum animal doméstico de algum mal. O bar do sr. Antônio Timóteo e do Lourão; o alambique do sr Orlando Baia, que fabricava vinagre, Cajuvita e cachaça; a oficina mecânica do sr. Abdon Copertino e também paragem de ônibus para Garanhuns, local de espera para Mundaú Mirim, como era denominada a hoje cidade Santana do Mundaú.

Todo esse aparato movimentava a economia local. A Rua da Ponte sempre foi uma das mais importantes e queridas ruas da região, pela sua importância, para o desenvolvimento do município, pois o movimento de ônibus e carros que abasteciam o mercado interno era sempre por ali.



quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Palavras da autora



Olivia de Cássia Cerqueira

 

Pela primeira vez me arrisco na “ficção”. É este “Antes que seja tarde” o meu quinto livro, que espero não ser rejeitado. Pensei que encerraria meu ciclo de pequena (quase ínfima) escritora independente, com Ainda Ontem, meu livro de crônicas recém lançado, que está tendo grande aceitação.

Antes da seção de autógrafos do pequeno livro de crônicas e no dia do trágico acidente acontecido na Serra da Barriga, na tarde de domingo, 24 de novembro, que vitimou 20 pessoas, em que um ônibus desceu uma ribanceira, fiquei sem acreditar naquela tragédia e resolvi que não ia parar de escrever, pois a vida é muito breve e tanto a leitura quanto a escrita me ajudam a estimular meu cérebro.

E lá estava eu escrevendo a história de uma lavadeira, passada na saudosa Rua da Ponte, lugar onde nasci e de onde tenho memórias afetivas da infância. Trata-se da história de Maria Rosa e sua família, com seus problemas, mas com muita fé e otimismo.




sábado, 26 de outubro de 2024

Aqui dentro tudo é igual

 


Olívia de Cássia Cerqueira

 

Aqui dentro está tudo igual. Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros que não sei identificar, fazem a festa. É primavera, mas no Nordeste do Brasil, já é verão. Acordo às 4h de vez. Antes, levanto para ir ao banheiro e beber água.

Ligo a TV e vou cumprir minha rotina diária, enquanto posso. Avalio que se não me movimentasse para cumpri-las, já teria parado de vez.

Coloco água para ferver, para preparar o café, com muito cuidado, para não me queimar. Preparo a proteína, a fruta e agradeço a Deus por mais um dia.

A Rinite alérgica me incomoda. Muito vento e poeira no horário da tarde; é a natureza se revelando. Faço chá de limão com alho, pelo motivo de que os remédios de farmácia já não resolvem satisfatoriamente.

Ouço as noticias da TV e me incomodo com tanta violência diária, guerras insanas, brigas pelo poder e muito mau-caratismo. As informações políticas daqui e dali nos entristece. Por outro lado, é preciso ter esperança, apesar de tudo.

Ouço o barulho do mar lá longe e as ondas se quebrando, na praia da Avenida que pede cuidados. Faz muitos anos que já não a frequento, por conta da poluição.

Nos meados das décadas de 70 e 80, era frequente a nossa presença ali. Éramos adolescentes e a moda da vez, era ficarmos bem bronzeadas, com a marca do biquini.

 Vinha de União dos Palmares, para encontrar parentes e era uma festa diária esse costume.  Com a Avenida poluída, o banho de mar, quando tinha equilíbrio e força nas pernas, e já recentemente, pegava meu material de praia, pegava a van no posto de gasolina e ia à praia do Francês, pertinho de Maceió.

Hoje isso não mais acontece, mas é bom a gente ter lembranças para compartilhar e eu tenho muitas, basta colocá-las pra fora.. Bom dia.

 

 

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Herança ou ignorância?


Olívia de Cassia Cerqueira

 (foto de arquivo)

Minha mãe contava (talvez faça parte da minha imaginação) que para contrair matrimônio com meu pai, eles enviaram sangue papa daquela época benzer.  Não sei se já na imaginação daquela época, evitaria doenças dos filhos, já que eram primos consanguíneos.

Numa pesquisa rápida na internet, observei que alguns casais católicos solicitam a bênção. De acordo com o site oficial (da Igreja Católica) apenas recém-casados podem receber a benção do Papa, em Roma”.

Hoje em dia, segundo o site oficial, o pedido pode ser solicitado via internet. Além disso, o casal precisa enviar uma certidão de casamento e documentos pessoais.

Meu irmão mais velho, Petrúcio, que foi coroinha aos doze anos em Jaboatão dos Guararapes e Carpina, em Pernambuco, me contou que no caso de parentes até o quarto grau, a Igreja pede autorização ao bispo, que por sua vez encaminha ao Papa o pedido.

E por essa exigência meus pais esperaram para casar, por causa da consanguinidade, mas que no caso do envio do sangue, ele não tem conhecimento.

Eu fico me perguntando se todos esses familiares nossos que tiveram ou têm Ataxia, fizeram esse pedido e os que casaram apenas no cartório ou passaram a morar junto, não têm conhecimento ou não tiveram sobre essa informação.

O site da Sociedade Brasileira de Genética Médica informa o que já temos conhecimento empírico: “Quando os pais compartilham um antepassado comum, há uma maior chance de ambos terem os mesmos genes defeituosos”, pontua.

“Se ambos os pais tiverem o mesmo gene defeituoso, há uma maior chance de ter um filho com uma condição genética. A forma mais comum de relacionamento consanguíneo é entre primos e em algumas sociedades e culturas pode representar uma proporção significativa dos casamentos”.

E as informações apontam para mim o que se vem dizendo há anos a respeito das heranças. Ou seja: para não dividirem bens com pessoas que não fossem da família esses casamentos aconteceram no passado. E hoje em dia, será ignorância? O costume dos antepassados até se entende, mas o de agora?

Olivia de Cássia Cerqueira  Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros faziam a festa, animados. Era primavera, mas no Nordeste do Brasil já er...